Acompanho a escrita ficcional e ensaística de Sinval Medina há seis décadas. Tão logo nos conhecemos na preparação do vestibular para o curso de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em dezembro de1961, logo estreitamos laços que permitiriam a exposição dos textos que produziríamos na universidade até a formatura, noite de 31 de março de 1964.
Enquanto minha opção pelas narrativas da contemporaneidade se mostrava persistente nas reportagens, o parceiro de turma discretamente oferecia à minha encantada leitura fragmentos de ficção. Era evidente para mim que estava diante de um escritor, mesmo que denotasse um rigoroso jornalista na apuração das informações.
Ao longo da década de 1960 essa percepção se confirmou: a novela Ninguém, inédita, lhe deu o primeiro prêmio literário em Porto Alegre. (Para meu desgosto, os originais datilografados se perderam, nos anos 1970, numa chuva de verão que inundou o porão da nossa casa no bairro do Jardim Bonfiglioli, quando já morávamos em São Paulo.) No intervalo entre essa novela e Liberdade Condicional, primeiro romance publicado pela Editora Codecri (a do Pasquim), em 1980, muitos avulsos foram engavetados. O exercício literário, porém, amadurecia em paralelo à atividade jornalística, com predomínio na edição de texto.
Nunca escrevi prefácios para os livros de Sinval Medina. Por idiossincrasia ou por convicção, defendo que obras de ficção não devem ser prefaciadas para não induzir a livre e misteriosa recepção. Um texto prévio, por mais aberto que seja, polui a relação lúdica entre leitor e autor. Também quando escreve para crianças e adolescentes e as escolas insistem na leitura didática com questionários a responder, ainda que não possa interferir, me oponho a essa prática que orienta o signo da relação ou a interação criadora.
É importante sublinhar que o escritor de ficção como ensaísta (o que se revela nesta edição) assume a consciência responsável de pensar o mundo na sua complexidade, nos rumos imponderáveis e incertos. O que o aproxima da compreensão epistemológica. Já a literatura que cria, em prosa e verso, vem das sombras do inconsciente – coletivo/individual – cuja explicação racional é muito arriscada. Daí minha ojeriza a prefácios dos romances do autor.
Escrevi, sim, a pedido, umas poucas orelhas ou abas de seus romances. Elegi três delas que passo a reproduzir. Na primeira publicação, obra marcada pela experiência sofrida da ditadura militar, Sinval Medina se procura no caos político da “liberdade condicional”; no terceiro romance, Memorial de Santa Cruz (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983), lança o fluxo de consciência nas águas turvas do personagem nacional com ou sem caráter; já no premiado livro de 1997, Tratado da Altura das Estrelas, ousa mergulhar no século XVI para sondar, sem freios analíticos, mitos fundantes do brasileiro ser. Daí em diante não mais abandonou esta navegação. Ele, como outros escritores afins, recusa o enquadramento na moldura de romance histórico. Prefere outro adjetivo, fundacional.
Eis as três abas ou orelhas dos três romances escolhidos:
Liberdade Condicional (1980)
Após mais de quinze anos de trabalho literário, Sinval Medina publica seu primeiro livro. Apesar de ter sido premiado em 1963, com a novela Ninguém, em concurso promovido pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, de onde é natural, optou por permanecer inédito até sentir-se inteiramente dono de seu ofício. Guardar textos na gaveta foi, para o escritor, além de um excelente exercício de autocrítica, uma consequência natural dos tempos de censura e repressão que se abateram sobre o país após 1964.
Transferindo-se para São Paulo em 1971, sofreu na carne a fase das mãos amarradas, boca contida e pensamento proibido, como professor da Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo. A saída da universidade, num processo de expurgo e cassação branca, em 1975, proporcionou novas e profundas experiências profissionais ao autor. Voltou à atividade jornalística, dedicando-se paralelamente à ficção, cujas possibilidades como meio de expressão e veículo de ação social foram redescobertas. O romance Liberdade Condicional saiu solto, liberto de maiores angústias formais, pleno de vivências humanas e desmitificado enquanto obra literária.
Um livro que nasce da experiência e do amadurecimento artístico e pessoal, Liberdade Condicional tem a força de uma técnica multifacetada e de um conteúdo que fala muito perto de nós, brasileiros dos anos 60 e 70. O autor lida, ao mesmo tempo, com a linguagem jornalística, sociológica, romanesca e, também poética. Os personagens se revelam por inteiro, sem a interferência do narrador, como se autoescrevessem, dentro de seus próprios repertórios de conhecimento, de linguagem, de sentimento. Do jogador de futebol ao jornalista, do professor universitário ao político, dos grandes tipos aos viventes miúdos, o autor traça, em Liberdade Condicional, uma galeria de personagens de profundo significado no Brasil de nossos dias.
O romance, em sua fragmentação de cenas e textos, em sua estrutura aparentemente caótica, é integro, unitário. E o que lhe dá fôlego e consistência é a ação de fundo: o período de formação da geração antes de 64, suas desesperanças, frustrações e impasses, tanto sociais quanto pessoais. O nível de humanidade dos personagens não se fecha num final imposto, determinado pelo autor. Sinval Medina joga com alto grau de ambiguidade e oferece ao leitor alternativas. O uso até certo ponto lúcido de palavras e situações estabelece um rico contraponto com a crueza e amargura do conteúdo. Ainda que radicalmente inovador em termos formais, o livro não se torna nunca um mero exercício intelectual, nem perde, um só momento, a movimentação e o interesse. A narrativa, surpreendente, insólita mesmo, é envolvente e projeta o ritmo da leitura sempre para a frente, numa sucessão de episódios que chega a deixar o leitor sem fôlego, Liberdade Condicional é daqueles romances que, ao final, nos faz ficar pensando: pena que acabou.
Memorial de Santa Cruz (1983)
Há traços que amarram o brasileiro para além das fronteiras regionais. A unidade nacional não é um mito como o do “milagre brasileiro”. Apesar da catástrofe, do desespero, da miséria e da frustração – justamente o húmus oposto ao milagre – o homem autêntico resistente, mantém aquilo que se pode chamar de caráter ou sem-caráter. Brasil de Santa Cruz, o personagem deste Memorial, assim se apresenta: nasce nos confins desta terra, percorre-a a esmo, na grande viagem da sobrevivência, sofre e vive com intensidade, aprende de tudo que se diz por aí, se escapa das encruzilhadas com malícia, animal sensual, sensível, esperto.
Sinval Medina tem uma trajetória de romance muito marcada pelo momento histórico e social. “Liberdade Condicional” exorcizou os anos 60 em Porto Alegre, época de grande fermentação política e de imediatas frustrações, dilema de Miguel Ortiz, principal protagonista do livro. “Cara, Coroa, Coragem” liberou os dramáticos acontecimentos – também políticos – do ano da graça (desgraça) de 1975, em São Paulo. Agora, Memorial de Santa Cruz voa mais longe. Acompanhamos Santa Cruz, enquanto solta seu grito de 300 páginas sem parágrafo, na mítica condição humana. Santa Cruz, um personagem fascinante, nos leva à grande aventura da vida. Não há tempo nem espaço que o prenda.
O desempenho do autor, cuja capacidade narrativa já se tinha comprovado nos outros romances, ultrapassa a textura das estórias que Santa Cruz conta. A linguagem é sua grande aliada. À medida em que vai vivendo ora trágicas ora cômicas peripécias, o sabor da região brasileira, dos tipos com que se encontra, das receitas da cultura popular passam pela frase. O memorial não é monocórdico. Apesar de não ser feito de parágrafos, de capítulos, é montado de cores, de sons, de significados. Da mata à caatinga, da Amazônia ao Rio de Janeiro, do Nordeste à favela de São Paulo, o autor rege uma grande orquestra da linguagem brasileira. Saborear é o termo. Cada frase acrescenta um novo tom no verde e amarelo desta terra.
Tratado da Altura das Estrelas (1997)
Os caminhos misteriosos da ficção nem sempre deixam visíveis as marcas da História, mas certamente sugerem às intuições um mergulho na cultura. Tratado da Altura das Estrelas, registro literário de uma grande e profunda viagem, pode pegar o leitor de várias formas: ou pela aventura das navegações que globalizam o mundo no início do século XVI; ou pelo deslumbramento da palavra poética; ou, dolorosamente, pela catarse da identidade de um povo.
O Brasil de Santa Cruz já foi tema de memorial para Sinval Medina. Há muito ele procura a tormenta no fundo do poço. No romance publicado no início dos anos 80, trouxe à tona a saga do homem brasileiro, esmagado pela aventura contemporânea. Santa Cruz, herói do mito do eterno retorno, se debate contra as adversidades com a picardia dos sobreviventes. Agora, o romancista ancora a imaginação em tempos remotos.
João Carvalho e Carvalhinho, pai europeu e filho das Américas, vivem a trama fundante do Brasil de Santa Cruz. Da tessitura ficcional que Sinval Medina já demonstrou dominar em outros romances, saem personagens emblemáticos do século XVI, mas o primeiro plano pertence ao filho de índia com português, semente mestiça de uma aventura humana com futuro garantido. Ao que tudo indica, entre azares e sortes, a alma brasileira mede constantemente a altura das estrelas para não sair derrotado.
Não fosse a epopeia suficiente para levar o leitor avante, o embalo da linguagem criaria outro encantamento. Do nômade português aos sedutores índios dos trópicos, a língua se alarga em tons e sonoridades que só o toque mágico do poeta consegue resgatar. A frase do Tratado exala os odores das naus, das matas atlânticas, dos impérios do Oriente, dos portos europeus. O gesto e o sabor da arte animam uma descida aos infernos para então se perguntar: de onde viemos e a que altura das estrelas está o porvir?
O prazer de compartilhar as peripécias seiscentistas e os fabulosos ambientes traçados pela viagem de circum-navegação, bem como o gozo estético da narrativa culminam no espelho profundo da condição brasileira. Certamente o autor não conscientiza as borrascas do imaginário coletivo, mas no abismo das palavras, na terrível urdidura do duelo Europa-América, todo o brasileiro encontrará suas grandezas, suas limitações.
