Até o ano de 1975, pesquisadores e professores brasileiros na área de Comunicação Social obtinham seus títulos em universidades do exterior, principalmente nos Estados Unidos e na França, devido à inexistência, no Brasil de cursos de pós-graduação na área.
Em 1972 surge na ECA/USP o primeiro curso de mestrado em Comunicação Social no País (e na América Latina). Cremilda Medina, já então atuante como jornalista e professora de Jornalismo, abdicou do doutoramento a que tinha direito por ser professora assistente no curso de jornalismo da UFRGS desde 1968. Vivíamos tempos de reforma universitária, que previa a transição do sistema de cátedras para o modelo departamental hoje vigente. Cremilda poderia ter sido doutora pelo menos dois anos antes de optar pelo mestrado. Abrindo mão da prerrogativa desbravou os novos caminhos que se abriam na investigação e na reflexão sobre a Comunicação como fenômeno social. Essa corajosa decisão formou e forjou a pesquisadora, pensadora e mestra que todos conhecemos.
Após brilhante trajetória como discípula de professores como Egon Shaden, Virgílio Noya Pinto, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Eduardo Peñuela, Rolando Morel Pinto, sob a orientação de Eduardo Morejón, torna-se a primeira jornalista, professora e pesquisadora a concluir o Mestrado no País.
A dissertação de Cremilda, intitulada A estrutura da mensagem jornalística teve origem em projeto concebido no final da década de 1960, quando ela ainda era professora na Universidade do Rio Grande do Sul. Essas reflexões a levaram, a partir de 1972, já na USP, a realizar a pesquisa que lhe daria o título acadêmico em 1975 e resultaria no livro Notícia, um produto à venda, três anos depois.
Pelas datas, fica óbvio que o trabalho de Cremilda se desenvolveu no auge da ditadura militar e da repressão à liberdade de expressão. Momento em que a circulação de notícias de interesse social era considerada atentatória à segurança nacional e, portanto, ferozmente censurada. A professora Cremilda, responsável Agência Universitária de Notícias (AUN) órgão laboratório do Departamento de Jornalismo da ECA/ECA, soltava os alunos no Campus instigando-os a buscar, no contato com pesquisadores, professores, estudantes e funcionários, as matérias que alimentavam o boletim semanal produzido pela AUN e distribuído aos veículos de comunicação de todo o país. Era assim, em contato direto com a realidade que os futuros repórteres aprendiam e compreendiam a essência da profissão que haviam escolhido. Era acusada pelos órgãos de segurança, representados na ECA pelo próprio diretor da unidade, Manuel Nunes Dias, de ensinar a fazer reportagem para “burlar o sistema”.
Por esse motivo, durante a greve que abalou a Universidade no ano de 1975, Cremilda foi obrigada a se afastar da ECA e do ensino de Jornalismo por dez anos, durante os quais teve intensa atuação no mercado profissional, destacando-se como editora de Cultura e Artes do jornal O Estado de São Paulo.
No início dos anos 70 do século passado, os estudos sobre a Comunicação Social e sobre o jornalismo, em particular, ainda davam os primeiros passos no Brasil. No plano teórico, reinava, na definição de Denis McQuail (Sociologia de la Comunicacion, Paidós, B.Aires, 1972) o chamado “paradigma dos efeitos”. Os pesquisadores queriam saber “como a mensagem afeta o comportamento do receptor”. Nos projetos de dissertação e nas discussões nas aulas e seminários, a preocupação constante era investigar a “influência” dos meios dos meios de comunicação na vida das pessoas. Vale lembrar que o “paradigma dos efeitos” se manifestava em duas vertentes teóricas: a escola funcionalista norte-americana liderada por Talcott Parsons que se apoiava na pesquisa de campo e em dados quantitativos; e a tradição ensaístico-filosófica europeia da sociologia do conhecimento, a chamada escola de Frankfurt, de inspiração marxista. No primeiro grupo alinham-se autores como Laswell, Lazarsfeld, Merton, Schram; no segundo, Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse. Se as duas escolas tentavam entender os efeitos da comunicação na chamada sociedade de massa, do ponto de vista político-ideológico ocupavam posições antagônicas. Os frankfurtianos eram de esquerda; os funcionalistas, de direita. Ambos os grupos, porém, utilizavam o conceito de “massa” como chave explicativa. De um lado, pelos efeitos da propaganda nazista na subida de Hitler ao poder. No segundo, como reflexo do caótico processo de urbanização e industrialização iniciado no século XIX, que transforma os Estados Unidos na principal potência capitalista mundial. O conceito de massa começa a desandar com o surgimento de uma terceira via de pesquisa e reflexão. Autores como Edgar Morin, Abraham Moles, Enzensberger, Umberto Eco e do tão pouco lembrado Jean Lohisse lançam novas luzes sobre a indústria da cultura como fenômeno social. Já em 1973, Gabriel Cohn registrava: “massa é hoje um conceito em busca de um objeto empírico”.
É nesse clima de ruptura com o paradigma dos efeitos que Cremilda vai ancorar a pesquisa que dá origem a Notícia, um produto à venda, livro que se tornaria um clássico desde sua primeira edição, em 1978. Ao problematizar a suposta manipulação de consciências atribuída à mídia, ela desloca a reflexão para o fazer jornalístico, para a prática profissional, revelando que não existe “mão invisível” a reger o que se produz nas salas de redação. Existe, isso sim, uma complexa interação de forças que torna a edição do dia seguinte uma teia de possibilidades, nunca um pacote de certezas. Ao assentar que a notícia é um produto à venda, deixa claro tratar-se de um produto que sobrevive da inovação, da renovação e da reinvenção. Resultante de um jogo dialético em permanente devir, o fazer jornalístico depende do rigor, da ética e da criatividade dos autores que se dedicam às incertezas e fugacidades da indispensável arte de tecer o presente.
Dando continuidade às inquietações levantadas por Notícia um produto à venda, em seus livros seguintes Cremilda se aprofunda nas insuficiências do modelo jornalístico consagrado pela modernidade, mergulhando na crise epistemológica que assombra o pensamento ocidental. Mas não se restringe ao repertório consagrado pela crítica racional, como autorizaria sua sólida trajetória acadêmica. Na verdade, sua obra funde reflexão e experiência, teoria e prática, razão e sensibilidade.
É difícil, e até sem sentido, enquadrar a obra de Cremilda em escaninhos disciplinares ou mesmo em espartilhos de gênero, pois seus livros são, ao mesmo tempo científicos, ensaísticos, didáticos e em alguns casos, memorialísticos. Em todos, porém, está presente o grão de dúvida suficiente para demolir ideias preconcebidas e convicções inabaláveis. Por isso, costumo dizer que a obra de Cremilda não se confunde com um manual de navegação para enfrentar tempestades e tsunamis. Para ela, o desafio é caminhar sobre as águas.
